Crônicas de uma Morte Dissimulada: Mercado de informações ou máquina de guerra?

 
    Em 1981, Gabriel García Márquez, inestimável escritor colombiano, escreve uma narrativa que inquieta e desafia o leitor  que a experimenta: a história de um assassinato premeditado em que os assassinos, antes de o ato ser consumado, espalham por todo o vilarejo a notícia de quem iriam matar. O alvo desses assassinos é Santiago Nasar, apenas mais um morador do vilarejo, entretanto, o único que não é avisado sobre o planejamento de seu assassinato, mesmo a  informação já sendo de amplo conhecimento do resto da população local. Beirando o absurdo, durante toda a narrativa a dúvida central da obra nunca é respondida de maneira compreensível: como é possível que ninguém avisasse a Santiago Nasar o que lhe era esperado?
    
    Recentemente, uma outra morte, dessa vez de uma figura real, foi amplamente anunciada: a morte de Kim Jong-un, Presidente do Partido dos Trabalhadores da Coreia. Nessa situação, contudo, o fenômeno foi o contrário do da obra de Garcia, a morte do Líder coreano foi vendida e propagada pela mídia ocidental massivamente, movimentando importantes veículos de mídia a debater e conjecturar sobre o assunto, chegando mesmo a pressupor quem seria a suposta figura a assumir a liderança caso Kim estivesse realmente morto. Todavia, para o espanto dos meios de comunicação ocidentais, o Presidente apareceu dias depois vivo em uma inauguração de uma fábrica de fertilizantes. Ao final dessa movimentação traiçoeira e falsificadora dos veículos de mídia, em especial os norte americanos, não houve uma morte, mas se evidenciou mais uma vez uma morte já ocorrida há décadas: a morte da credibilidade da mídia imperialista. Entretanto, esse cadáver, mesmo que dê todos os sintomas e evidências de um ser não vivo, continua sendo ignorado e tratado como um organismo cheio de vitalidade e opulência. Faz-se necessário desnudar novamente a morte ignorada, dissimulada, e acobertada daquilo que nós chamamos de "veículos de informação ocidentais".

O “Estado de Schrödinger”: George Orwell encontra o ocidente
    
    Desde Abril, o líder supremo da Coreia do Norte entrou em um estado de relativa ausência, não aparecendo em público com a frequência ordinária. Esse estado de ausência levou à especulação por empresas de comunicação de todos os lados do globo, passando de "recuperação após um procedimento no sistema cardiovascular"[1] até mesmo à confirmação do suposto óbito do líder.[2] 

    Mas o que permite que tantas dúvidas existam, mesmo diante da ausência de qualquer informação oficial do Estado da Coreia Popular, nome real da Coreia do Norte, sobre alguma situação que fuja da normalidade? A resposta é o racismo, e em especial o orientalismo, que fazem possível que, se tratando do oriente, o impossível seja crível. O processo de desumanização, estereotipagem e mistificação daquilo reconhecido como o não-branco, iniciado com o ciclo colonial e a estruturação do capitalismo mundial, tornou o censo de realidade do ocidente distorcido e preconceituoso ao reconhecer as formas orientais de organização e manifestação culturais e intelectuais. 

    A ideologia dominante trabalha dia e noite para criar uma narrativa hegemônica que pinte todos aqueles que se opõem ao imperialismo e ao colonialismo como povos bárbaros e não confiáveis. Diante disso, a mídia ocidental trabalha de forma exaustiva para reafirmar a barbaridade e animalidade dos povos que lutam por sua soberania nacional[3]. Dessa forma, o Estado Norte Coreano é representado como uma espécie de Gato de Schrödinger a nível internacional, onde não se dá pra saber o que se passa internamente, a incerteza é a única certeza, e a verdade é uma palavra vazia desconhecida pelos coreanos do Norte. A manipulação é uma constante da formulação de seu estado nacional; não se pode acreditar nas informações oficiais, não se pode acreditar em seus líderes e não se pode acreditar nos seus cidadãos, ao não ser os desertores.

    Entretanto, uma pergunta simples na maioria das vezes não é feita: Quantas vezes de fato o Estado Norte Coreano mentiu? Qual é o estudo sério que comprova e verifica as ditas manipulações do Estado Nacional? Aquele que se permite a dúvida e à pesquisa verificará rapidamente que a desconfiança com o regime coreano é apoiada em nada, ou melhor, apoiada em uma rede de mentiras que, essas sim, são amplamente desmascaradas pelo jornalismo sério e comprometido com a verdade. Kim Jong-Un não foi o primeiro cidadão da Coreia Popular a reviver para mídia ocidental, supostas execuções são cotidianamente anunciadas em nosso veículos de informação e logo em seguida desmentidas, com uma divulgação e alcance infinitamente reduzidos.[4] 

    A forma como o Estado Coreano é tratado pela mídia internacional faz com que se criem narrativas diversas, e muitas vezes antagônicas, sobre o que se está ocorrendo no país. Talvez, se o escritor de "1984" estivesse entre nós, teria a mais perfeita manifestação daquilo que Orwell chamou de "duplipensamento", conceito usado na distopia para caracterizar a flexibilidade e divergência daquilo que é "real" dentro do "Estado Totalitário", onde o poderoso partido único controla e molda a verdade com suas mãos de maneira desenfreada e contraditória. A instabilidade, a constante incerteza e a desvirtuação da verdade pelos múltiplos veículos de comunicação fazem com que ela se torne um conceito dinâmico e desvalorizado, alternando e se adaptando de acordo com que for mais conveniente para a narrativa global imperialista.

    Dominadas por três monopólios internacionais de notícia, sediados nos EUA, na Inglaterra e na França, essas 3 agências globais de comunicação são responsáveis por praticamente todas as notícias internacionais que se propagam no ocidente, cabendo aos jornais locais um simples trabalho de tradução. O mercado da informação hoje se resume ao interesse de três potências globais[5], que fazem exatamente aquilo que acusam a Coreia Popular de fazer, estabelecem sua narrativa dos fatos baseados em seus interesses e afogam o resto do mundo nela. 

A mentira repetida mil vezes…
    
    Com a notícia do suposto estado de Kim, a bomba havia sido lançada. Famosos jornais no mundo lotaram suas reportagem de um ar misterioso e o mais puro sensacionalismo, em programas como o "Fantástico" da Rede Globo de Televisão chegou-se a afirmar que o país havia banido a cultura ocidental da nação. Entretanto, estudiosos sérios do país e visitantes afirmam que é comum encontrar produtos que remetam a figuras da cultura ocidental, bem como a maioria deles assistem filmes e consomem literatura produzida no mundo capitalista.[6] 

    O imperialismo e sua máquina de guerra, chamada de veículos de informação, mentiram. Mentiram sobre Kim Jong-un, mentiram sobre os executados norte coreanos, mentiram sobre os acordos desenvolvidos entre Trump e Kim, e mentiram sobre a cultura e o desenvolvimento do país, afirmando que a nação é uma monarquia, o que ela não é[7] . Mas a república norte coreana não foi a única nação a ser atacada vilmente pela máquina de guerra ocidental, a mídia burguesa também mentiu sobre a repressão na Venezuela e mentiu sobre a resposta e responsabilidade chinesa diante da crise gerada pelo novo coronavírus[8]. Inclusive, a China é a vítima principal que vem sendo vilipendiada pelo mercado de informações, não é difícil de se entender o motivo quando se observa o rápido desenvolvimento e expansão de influência do país asiático durante as últimas décadas. O Império e suas ferramentas sabem quem são seus inimigos, e não dispensa esforços em difamar de maneira contínua todas suas manifestações políticas, organizativas e filosóficas. Nesse processo, queima-se enquanto fonte de credibilidade de maneira repetitiva, entretanto, espalha a mentira de forma tão assídua e consistente que a verdade deixa de ser algo importante para a interpretação do mundo, o Império é quem cria a verdade.

    Não existe mercado de informações, não existe liberdade de expressão, não existe “imprensa livre”. O brilhante documentário A Revolução não será Televisionada de Kim Bartley e Donnacha O'Briain já demonstrou isso em cores e fatos em 2003, onde é elucidada de maneira objetiva a participação ativa dos veículos de mídia privados na tentativa de golpe contra o ex-presidente venezuelano Hugo Chávez . O que existe é um defunto, estirado no centro da praça do vilarejo, apodrecendo há dias sob luz do sol e à vista de todos aqueles que passam por suas ruas imediatas. Todavia, todos aqueles que passam pela praça não acreditam que o indivíduo esteja morto de fato, comenta-se pelas casas que o defunto na verdade está vivo e atuante, alguns até mesmo param diante do finado e conversam com ele, convidando-o para um jantar ou um café da tarde. Esse gato não está envolvido por uma caixa, está desnudo e visivelmente falecido. Mas parece tarde demais, os cartazes, jornais, revistas afirmam e reafirmam sua existência de maneira tão convicta que não é possível para a população local que eles estejam mentindo. De vez em quando, casos como a suposta morte de Kim Jong-un aparecem para nos lembrar e apontar o óbvio: a mídia ocidental está morta, afogada em suas próprias mentiras, embora a maioria das pessoas ainda não tenha percebido.


Por Enzo Medina
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Notas:




[4] Para uma leitura que explicite e exponha os erros e falsificações da mídia  burguesa em relação aos supostos executados da Coreia Popular: https://ahora-o-nunca.weebly.com/corea-del-norte/los-resucitados-de-corea-del-norte


[6] Para uma leitura de mas vigor sobre o tema, recomenda-se ler o livro do professor de Paulo Visentini A revolução coreana: o desconhecido socialismo Zuche publicado pela editora Unesp e a entrevista do do professor encontrada em: https://youtu.be/vuANLhXTZF0, e os artigos do CEPS - Centro de Estudos de Politica de Songun e seu guia de estudos sobre a Coreia Popular: https://cepsongunbr.com/onde-pesquisar-sobre-a-coreia-do-norte/


[8] Para a devida explicitação das farsas propagadas pela mídia imperialista, acessar, respectivamente: http://www.patrialatina.com.br/como-midia-inventa-repressao-na-venezuela/ e https://revistaopera.com.br/2020/03/22/o-coronavirus-e-a-propaganda-anti-china/

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