Luta socialista e usufruto do capitalismo: A falsa antítese


Navegando nas mais variadas possibilidades de interação das redes sociais, quase aparentando ser um preceito, é muito mais que comum o borbulho, em pleno século XXI, de incontáveis polêmicas envolvendo o fenomenal pensamento de nosso velho amigo barbudo, Karl Marx. Entre as mais recorrentes, certamente vence o clássico – porém infundado – argumento do “socialista de iPhone”. Uma retórica cujo embasamento chama-se anticomunismo, via de regra reproduzida a torto e a direito, sem qualquer tipo de profundidade, com a utilidade de uma arma argumentativa de cerceamento de debate; ou seja, o sujeito que a clama deseja, simples e puramente, dar um basta na discussão em questão.
Veja, uma vez invocada a bravata, subentende-se que um militante, simpatizante ou estudioso das obras marxianas e engelsianas estaria mostrando-se incoerente ao se intitular comunista, socialista e/ou marxista – porque são diferentes, mas nossos caros “capitalistas sem capital” não costumam saber desse fato – enquanto desfruta das supostas regalias e benefícios do “glorioso” sistema de brutal exploração do homem pelo homem, o sistema capitalista. Aqui digo “supostas” pois, quando entendemos a tecnologia enquanto um avanço ou benefício do capitalismo, estamos considerando que a evolução científica é inerente a esse sistema. Isso é um erro, porque implica em compreender tanto que num regime pós-capitalista – ou não-capitalista em geral – a inovação tecnológica estaria ausente[1], quanto que o regime do capital por si só é um mar aberto para as possibilidades de avanço da ciência[2], e ambas as percepções estão erradas.
Grosso modo, para fins didáticos, é possível sintetizar a cartada na compreensão de que muitos indivíduos – certamente alinhados ao senso comum, portanto, se trata de um tentáculo da ideologia[3] – consideram uma hipocrisia da parte de nós, comunistas, o fato de construirmos nossa luta sob um horizonte anticapitalista e, ao mesmo tempo, “desfrutarmos” do capitalismo. E agora? Cai por terra a construção do socialismo? Devem ser queimadas as milhares de páginas escritas pelas mãos de Marx e Engels? Deve ser ignorada a vasta produção intelectual e prática dos pensadores de tradição marxista posteriores à dupla? Estará tudo acabado? Vejamos.
Antes de mais nada, o capitalismo é um sistema de mercantilização da vida. O que isso significa? Bom, basicamente, nós somos seres vivos dotados de nossas respectivas capacidades e determinados por nossas respectivas necessidades. Para realizarmos nossa função enquanto seres dotados de existência, isto é, para cumprir com nosso papel de “coisa viva” no ambiente natural, precisamos suprir essas necessidades. Dentre elas, a fome, a sede, a libido, o frio, a reprodução, ou seja, a vida em si.
Nenhuma dessas necessidades, porém, existe por si só. Enquanto seres sociais, todas as nossas decisões e ações são socialmente determinadas, isto é, delimitadas pelas condições materiais da realidade concreta. Com as necessidades não ocorre de forma diferente: todos as sentimos, porém, as realizamos de acordo com as possibilidades postas no limite – histórico, contextual, situacional, social, geográfico, etc. – da concretude, da materialidade na qual estamos postos; ou, parafraseando Gayle Rubin, “a fome na barriga não dá pistas sobre a complexidade da culinária”[4].
E como nós suprimos tais vontades? Evidentemente que através da transformação teleológica[5] da natureza, isto é, não só nos utilizando dos meios para nós “naturalmente” disponíveis como também criando novos meios os quais antes não estavam colocados na realidade. Isso é o que Marx chama de trabalho, nossa capacidade, enquanto seres humanos, de moldar a natureza para suprir nossas necessidades e, a cada transformação dessa, criar também novas necessidades. Vulgarmente falando, nossa habilidade de “criar o novo”.
Portanto, respondendo às condições históricas, se continuamente estamos transformando a realidade, ao transformá-la, como somos parte dela, nos transformamos em conjunto. A esse processo, essa relação de metabolismo entre nós, seres humanos, e a realidade ao nosso redor – que se desenvolve de maneira dialética –, de forma que afasta as barreiras naturais ao seu decorrer, capacitando-nos, com base em meios por nós colocados anteriormente na realidade, a pensar novos fins e novos meios para seguir transformando essa mesma realidade, dá-se o nome de desenvolvimento das forças produtivas.
Mas, se a cada necessidade desenvolvida precisamos desenvolver também os meios pelos quais nós supriremos essas novas necessidades, isto é, as ferramentas com as quais nós transformamos e transformaremos a natureza – os assim denominados meios de produção –, então nossa capacidade produtiva vai, por assim dizer, se “complexificando” durante o processo.
Ora, tal capacidade se traduz, portanto, quase enquanto sinônimo de liberdade, porém, não uma liberdade abstrata e incondicional, mas sempre historicamente condicionada e determinada pelas próprias condições nas quais ela existe[6]. Se somos seres livres, a liberdade existe. Se existe, é real e concreta, portanto, sempre historicamente condicionada, sempre condicionada a nossa própria existência.
Ocorre que, no caso do capitalismo, essa tal liberdade é sempre sobredeterminada pela mercantilização.
Nesse sistema, os meios pelos quais nós suprimos nossas necessidades (comida, roupa, casa, etc.) são mercantilizados, isto é, transformados em mercadoria; e os meios pelos quais nós produzimos esses suprimentos (ferramentas, fábricas, terra, etc.) são privados, isto é, pertencem a uma parcela específica da humanidade, sua classe dominante, a burguesia. Isso implica em compreender que, se eu não sou dono de nenhum desses utensílios os quais me permitem produzir suprimentos, se eu não sou proprietário desses meios de produção – situação de norma para a maioria esmagadora da população global –, preciso, então, adquirir através da troca de valores, isto é, da compra, essas mercadorias, esses suprimentos. Para tal, necessito de renda.
A renda adquirirei ao vender meu único bem, a minha força de trabalho, para o burguês, proprietário dos meios de produção. Eu, enquanto sujeito ativo da camada social responsável pela realização do trabalho, isto é, enquanto membro da classe trabalhadora, produzo as mercadorias na fábrica dele, membro da classe proprietária, mas, como é característico desse modo de produção, o que por mim é produzido, de mim é alienado. O burguês rouba de mim a minha criação. Me impede de utilizar dela como bem entendo. A isto Marx intitula alienação do trabalho.
Ora, então a única forma pela qual eu conquistarei o acesso a esses necessários suprimentos – agora na forma de mercadorias – é comprando-os, comprando essas mercadorias. Com o salário que me é concedido em troca de minha força de trabalho, sou obrigado a comprar nos mercados os meus meios de subsistência, produzidos pelos mais variados trabalhadores dos mais variados ramos da produção e distribuídos pelos mais variados funcionários dos mais variados ramos da circulação dessas mercadorias.
Para cada uma dessas profissões se exerce um esforço de trabalho específico, qualitativamente diferente dos demais, ou seja, os indivíduos que os realizam também se especializam em algum específico, diferente dos demais. Aqui se configura a divisão social do trabalho, por certo, mãe da reificação[7] e do fetichismo[8]: se os sujeitos protagonizam agora tipos únicos de trabalho, diferentes entre si, isso significa que deles se mascara o funcionamento dos demais trabalhos, excepcionalmente os processos de produção das mais variadas mercadorias, logo, deixa de ser visível para ele toda a lógica produtiva exploratória de todas e cada uma das mercadorias na sociedade do regime burguês (lê-se capitalismo).
Contudo, ainda que não esteja evidente – por conta dessa série de processos e feitiços no funcionamento do Capital –, continua sendo a parcela da sociedade cujo posto é a realização do trabalho, o proletariado, responsável pela produção de tudo o que nos cerca.
Assim sendo, não é possível abonar contradição entre construir uma linha teórico-prática anticapitalista e usufruir do sistema corrente pois, literalmente, todo ser humano da terra tem apenas duas opções imediatas: ou reproduz esse sistema, seja vendendo sua força de trabalho para comprar mercadorias e sobreviver, seja possuindo capital; ou morre. Ponto.
E perceba, é estando dentro desse sistema que podemos – e devemos – lutar contra ele. Ora, para desafiar o status quo, é preciso estar vivo, mas como vivemos sob sua lógica de reprodução, então é inevitavelmente necessário realizar todo o processo já exemplificado para continuar a viver e continuar construindo uma alternativa que vá contra essa ordem vigente, por um mundo justo, sem exploração.

Por Luan Medina
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Notas:
[1] Considerar que num sistema socialista, ou, de modo geral, anticapitalista, a inovação tecnológica não existiria é um erro crasso pois parte do sofisma de que o capitalismo é a precondição de existência dessa inovação. Ora, a falsa ideia de que o que permite o avanço das ciências é a chamada “livre concorrência” se afunda em sua própria condição de fútil brevidade, uma vez que o ímpeto de inovação tecnológica é uma característica da prática humana presente em suas mais variadas configurações históricas – pasme, pré-capitalistas. Do contrário, ainda estaríamos comendo carne crua.
[2] Levar como fato, por sua vez, que o modo de produção capitalista permite livremente a evolução tecnológica e o desenvolvimento da complexidade produtiva de um modo geral é igualmente incorreto a partir da base argumentativa, cujo fundamento ignora completamente que, nessa maneira – capitalista – de produzir e reproduzir a vida, só é dada a permissão para que um projeto científico avance e se desenvolva em prática se apresenta utilidade. É julgado útil, porém, não com base em sua capacidade de suprir ou não as necessidades reais do povo, mas sim pela projeção de seu lucro, isto é, se arcar com seus custos é benéfico ou não para a classe dominante. Grosso modo, antes de serem considerados como objetos dotados de valor de uso (utilidade), são julgados enquanto objetos dotados de valor de troca (valor econômico), já que, na ditadura da burguesia, tudo é mercadoria. De maneira geral, isto se torna visível se tomamos a falta de leitos nos hospitais durante a pandemia do COVID-19 como exemplo: de fato temos capacidade produtiva para construir tais leitos, e se a preocupação real de nosso modo de sociedade fosse a vida, uma vez que precisamos deles, de fato o faríamos; mas, enquanto mercadorias, os leitos seguem em falta, porque sua construção não é lucrativa, porque salvar vidas não é lucrativo, logo, não os produzimos nem produziremos.
[3] A chamada ideologia é uma categoria da teoria marxista que abrange o mecanismo de imposição dos valores, costumes, instituições, ideias, concepções e teorias da classe dominante, a burguesia, enquanto nossos próprios, objetivando transformá-los em valores, costumes, instituições, ideias, concepções e teorias de aparência universal. De maneira que auxilia na dominação e, portanto, no processo de exploração inerente ao capitalismo, tal mecanismo nos impede de questionar tais valores.
[4] RUBIN, Gayle. Pensando o Sexo: Notas para uma Teoria Radical das Políticas da Sexualidade. 2012.
[5] Entendemos por teleologia a capacidade de agir de acordo com um objetivo conhecido, seja de forma consciente ou inconsciente. A transformação teleológica da natureza, isto é, o trabalho, compõe a forma mais elementar, essencial, fundamental, da denominada práxis, isto é, da unidade entre a atividade teórica (a ideação dos fins e dos meios) e a atividade prática (o fazer em si). Aqui mora a diferença fundamental entre os animais humanos e os não-humanos: eles usam os fatores ao seu redor para atingir determinada finalidade – a depender do grau de complexidade de seu sistema nervoso central –, já nós somos capazes de projetar novos meios para além dos já existentes.
[6] Parafraseando Marx, “Os homens fazem sua própria história; contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram. [...]” (MARX, Karl. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. 1852.)
[7] No marxismo, a reificação – ou coisificação – é o resultado do processo de produção e reprodução do sistema capitalista no qual as pessoas passam a ser consideradas como objetos, coisas sem vida própria, sem autonomia. Representam, então, apenas a expressão física, a objetificação, de sua capacidade de exercer trabalho. Dessa forma, se “coisificam” também as relações sociais, de modo que são expressas como meras relações entre objetos de troca – de um lado, a mercadoria força de trabalho, de outro, a mercadoria dinheiro na forma de salário. No processo de reificação, os sujeitos perdem os traços de subjetividade e individualidade, passando a compor um coletivo cuja vida é mediada pela produção, pelo trabalho alienado, os tornando uma simples cadeia de engrenagens sem vida do grande relógio do Capital.
[8] Para a compreensão do artigo, basta que entendamos o fetichismo como um processo no qual, graças aos desdobramentos da forma produtiva capitalista, se obscurecem as relações sociais, isto é, interpessoais, envolvidas na produção e circulação das mercadorias. Nos faz interpretar a esfera econômica como as relações entre o dinheiro e as mercadorias, não entre os possuidores desse dinheiro e dessas mercadorias, os verdadeiros agentes das relações de troca. Ou seja, ao invés de interpretarmos as relações econômicas como relações entre pessoas mediadas por coisas, interpretamos como sendo relações diretas entre coisas, sem as pessoas. As pessoas agem como coisas e as coisas, como pessoas; e aqui nasce o culto dos economistas liberais ao “mercado”, quase que um ser metafísico.

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